O estado do Pará é responsável por mais de 93% de toda a produção nacional de açaí, mas uma série de denúncias realizadas por jornais internacionais expôs a realidade, que mostra o infeliz envolvimento da cadeia com o trabalho infantil
![Trabalho infantil produção açaí Pará](https://static.wixstatic.com/media/c4cc4d_fa893fc80ba64b7da4f2acb14a09aa0e~mv2.jpg/v1/fill/w_124,h_75,al_c,q_80,usm_0.66_1.00_0.01,blur_2,enc_auto/c4cc4d_fa893fc80ba64b7da4f2acb14a09aa0e~mv2.jpg)
Segundo dados da Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e da Pesca (Sedap), o Pará foi responsável por mais de 93% de toda a produção nacional de açaí, o que representa 1,6 milhão de toneladas do fruto. Apenas na comercialização interestadual do açaí, o Pará gerou aproximadamente R$ 656 milhões, enquanto na exportação, o valor foi de quase R$ 196 milhões.
No ano passado, o Pará exportou 8,2 mil toneladas de açaí, com valor de exportação de US$ 27,74 milhões de dólares, segundo os dados divulgados pelo Núcleo de Planejamento e Estatísticas da Sedap. No primeiro quadrimestre de 2024, o Estado exportou 4,2 mil toneladas de açaí, o que representa um crescimento de 86,92% se comparado ao mesmo período do ano anterior.
Mesmo se destacando na produção e comercialização do fruto, a cadeia produtiva do açaí na Região Norte não é totalmente rastreável e não possui a fiscalização necessária para todas as partes do processo. Essa lacuna abre uma margem para que a exploração e o trabalho infantil ganhem lugar entre os produtores da região.
A denúncia ao trabalho infantil
A partir de uma denúncia feita pelo The Washington Post em 2023, o açaí foi acrescentado na lista de produtos fabricados a partir do trabalho infantil ou forçado, pelo Departamento do Trabalho dos EUA.
"Onde quer que procurássemos, encontrávamos trabalho infantil ou relatos de trabalho infantil", disse a procuradora federal do trabalho Margaret Matos de Carvalho, ao The Post. "Todo mundo sabe - as cidades, as escolas e o estado."
Uma das justificativas apresentadas para o emprego irregular de menores seria que o processo de colheita é mais fácil quando feito por pessoas pequenas, devido ao formato da árvore, que é alta e fina. Em 2021, o The Washington Post já havia denunciado o perigo que as crianças enfrentam com a prática a partir de relatos de fraturas ósseas, ferimentos com faca, picadas de cobras venenosas e aranhas.
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O jornal norte americano não foi o único a mostrar a realidade da cadeia produtiva do açaí. A CNN Portugal, em março deste ano, denunciou a utilização de mão de obra infantil no interior do Amapá e no Pará. Igarapé-Miri é a maior produtora de açaí, conhecida como "capital mundial do açaí", a cidade é uma das mais antigas da Amazônia e possui um vasto território rodeado de rios e ilhas.
Em meio ao processo produtivo das fábricas e exportadores, estão as pessoas das comunidades ribeirinhas que produzem o fruto. Apesar da fama mundial e dos investimentos destinados a comercialização do açaí, a estrutura básica de venda nunca mudou. As famílias trabalham muito para conseguir um retorno mínimo por sacas de açaí. Porém, segundo The Post, em uma região com poucas opções, o açaí pode ser a diferença entre pobreza extrema e uma "pobreza estável".
"Eu vejo o rosto das pessoas quando eu digo 'trabalho infantil'", disse Rosilda Lobato, conselheira de famílias do centro de serviço social de Igarapé-Miri ao The Post. "Eles falam, eu trabalhei quando criança e estou bem".
É assim que Deusiene Gonçalves, 39, vê a situação. Ela tinha 8 anos quando começou a colher açaí. O trabalho era exaustivo, tanto que muitas vezes ela não conseguia ir à escola pela tarde. Assim, ela saiu do colégio aos 14 anos.
Os 4 filhos de Deusiene também começaram a colher açaí aos 8 anos. Eles também saíram da escola antes de terminar o ensino médio. "Eu não me arrependo. Eu era pobre e meus filhos eram pobres também", disse Deusiene ao The Post.
O Trabalho infantil na região
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"No Brasil, a Constituição Federal estabelece a proibição, de qualquer tipo de trabalho, para menores de 16 anos de idade. Salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos, situação que caracteriza o trabalho protegido legalmente. A Constituição Federal proíbe ainda o trabalho noturno e em condições perigosas ou insalubres, bem como nocivas à moralidade, para o menor de 18 anos de idade", explica a presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB/PA, Maria Luiza Ávila.
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Segundo dados do IGBE, no Brasil, de 2019 a 2022, o trabalho infantil aumentou cerca de 7%. Em 2022, havia 756 mil crianças e adolescentes exercendo as piores formas de trabalho infantil, que envolviam risco de acidentes ou eram prejudiciais à saúde. E entre a parcela em situação de trabalho infantil, 23,9% tinham de 5 a 13 anos; 23,6% tinham 14 e 15 anos e 52,5% tinham 16 e 17 anos de idade.
No Pará, em 2019, havia 118.768 crianças e adolescentes de 5 a 17 anos em situação de trabalho infantil, o que equivalia a 5,8% do total de crianças nessa faixa etária. Nesse mesmo universo, cerca de 37,2% das crianças, exerciam algumas das piores formas de trabalho nos termos da Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, onde, segundo Maria Luiza Ávila, se encontra o trabalho na produção e colheita do açaí.
"Importante ressaltar que o trabalho infantil dentro da cadeia produtiva do açaí, é considerado uma das piores formas de trabalho infantil, sendo proibida para os menores de 18 anos. A ocorrência de tais situações configura-se em um dado sempre muito alarmante no Estado do Pará, principalmente, no período de safra do fruto, onde se registra, principalmente nas ilhas, grande evasão escolar de crianças e adolescentes, o que sem dúvida configura-se em enorme prejuízo".
Fiscalização
Como resultado das diversas denuncias e reportagens realizadas nos últimos anos, o auditor-fiscal do Trabalho, Eduardo Reiner, afirmou ao Rede Brasil Atual (RBA) que a cadeia produtiva do açaí ficaria em fiscalização permanente em 2023. "A cadeia produtiva do açaí ficará em estado de fiscalização permanente até o fim da colheita, em novembro”.
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Durante o início das fiscalizações na região do Baixo Tocantins, no Pará, em julho de 2023, foram encontrados diversos casos de trabalho infantil na colheita do produto. Segundo o Sinait (Sindicato Nacional dos Auditores), as ações de fiscalização inspecionaram a colheita e empresas processadoras da polpa em municípios que estão entre os maiores produtores de açaí – Abaetetuba, Cametá, Igarapé-Miri, Mocajuba e Limoeiro do Acaju, abrangendo as diferentes ilhas desses locais.
Os fiscais relataram à RBA que a colheita, feita a céu aberto, exige que o trabalhador suba até o topo da planta, com risco de queda. “Também há exposição a fatores de riscos físicos e biológicos, além de materiais cortantes e animais peçonhentos, como cobras.” Eles encontraram “crianças e adolescentes em condições físicas ruins decorrentes desse trabalho perigoso, machucados por quedas, com problemas de coluna e outros osteomusculares, picados por cobras”
“Esse adolescente não pode trabalhar na coleta até completar 18 anos e mesmo após os 18 anos temos que pensar em soluções que tragam segurança, pra gente pensar num produto sustentável em um produto que queremos que seja referência de sustentabilidade e da Amazônia pro mundo nós precisamos melhorar as condições de trabalho dessas famílias”, disse o auditor Eduardo Reiner ao G1 Pará.
"As denúncias de ocorrências de trabalho infantil devem ser encaminhadas a estes Órgãos, responsáveis pela autuação e encaminhamento das famílias envolvidas em situação de trabalho infantil à rede de proteção. Além do resgate e assistência às famílias, o resultado da fiscalização redunda na notificação das Prefeituras envolvidas, informações e esclarecimentos das situações encontradas. O mesmo acontece com a Empresas que fazem parte da cadeia produtiva que passam a ser alvo de fiscalização, o que pode resultar em penalidades administrativas", ressaltou maria Luiza Ávila.
Soluções
Os números alarmantes no estado apontam para a necessidade de desenvolver projetos e políticas que possam diminuir ou sanar a problemática do trabalho infantil na colheita do açaí.
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Recentemente, foi desenvolvido pelo Açaí Kaa - empresa inovadora na produção de açaí - uma máquina capaz de auxiliar na colheita do fruto. A máquina automática de colher cachos de açaí promete revolucionar a produtividade do setor, permitindo o acesso a mais de 100 pés da fruta numa única manhã. Pelo menos, 10 vezes mais rápido que um peconheiro ou ribeirinho seria capaz de produzir.
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"Entendemos que, uma vez empoderado de tecnologia, o ribeirinho terá menos dependência de mão-de-obra familiar. Irá mais longe para colher e manejar a floresta e aumentará de maneira expressiva sua renda. O colhedor permitirá alcançar frutos sem a necessidade de escalar o açaizeiro. Isso vai reduzir também os acidentes de trabalho, além de reduzir sobremaneira o esforço físico para realizar a colheita", explica o CEO do Açaí KAA, Reinaldo Santos.
Apresentada como protótipo no Festival do Açaí, em Belém, a máquina terá uma versão comercial disponível ainda este mês e em breve poderá ser encontrada para pré-venda. "Precisamos ter soluções concretas que resolvam essa questão e também melhorar as condições de trabalho e vida dos ribeirinhos. Entendemos que esse é um pilar fundamental da sustentabilidade, para viabilizar a floresta em pé", comenta Reinaldo.
Além do coletor automático, a empresa também desenvolveu um sistema de Cabo vias em parceria com a Bamak Equipamentos, de Santa Catarina. O sistema já é usado para coleta de outras frutas e pode atender também o açaí, ampliando o acesso às áreas de produção e auxiliando também no manejo das florestas de açaí. "O sistema de cabo-vias, por sua vez, permite transportar o trabalhador até pontos mais distantes do açaizal, que não eram atingidos anteriormente, garantindo que a produção, bem maior por conta do colhedor por controle remoto, possa chegar com tranquilidade aos barcos e de lá para os pontos de coleta", detalha o CEO.
Já o médico do Hospital Metropolitano de Belém, José Guataçara Corrêa Gabriel, que atendeu muitos peconheiros que sofreram acidentes ao colher o fruto, desenvolveu um aparelho que pode evitar lesões graves ocasionadas pelas quedas das árvores. "Eu bolei um aparelho para evitar que a pessoa caia do açaizeiro. É uma cadeirinha feita de cordas que a gente enrola no caule da árvore, e, se o apanhador se desequilibrar, a corda trava e ele não caí. Isso você faz com 5 metros de corda, que não custa nem R$ 10, e evita um traumatismo que pode custar quase R$ 20 mil”, explicou o médico ao Intercept Brasil.
Gabriel também viaja pela região ensinando os ribeirinhos a imobilizarem os feridos de forma correta, já que, a área da colheita é de difícil acesso. “Para chegar do mato onde caiu até o hospital, a pessoa é manuseada umas sete vezes. Então, calcula, um indivíduo com uma fratura de coluna entra em um barco, sai do barco, sobe barreira, muda de lugar, e assim vai. A possibilidade de lesão é muito grande”, disse o médico ao Intercept Brasil.
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A rastreabilidade da cadeia produtiva do açaí também está em discussão desde 2018. Em 2020, a Agência de Defesa Agropecuária do Estado (Adepará) desenvolveu a Guia de Trânsito Vegetal (GTV) do fruto, que permite a rastreabilidade do açaí e regulamenta o seu trânsito interno. A partir de então, todos os produtores e transportadores de açaí deveriam realizar o cadastro na Adepará e apresentar a GTV nos postos de fiscalização.
No ano passado, foi realizado um debate sobre os desafios e as oportunidades para a sustentabilidade na cadeia produtiva do açaí. A fiscal agropecuária Joselena Tavares, gerente de Classificação Vegetal da Adepará e responsável pela Unidade de Guia de Trânsito Vegetal (UGTV) abordou o tema no Painel “Rastreabilidade com GTV - Açaí”, detalhando o trabalho executado pela instituição na emissão da Guia de Trânsito Vegetal (GTV).
“A rastreabilidade é a capacidade de acompanhar a movimentação do produto, sua origem e o destino final. São dados que garantem a qualidade do produto e asseguram práticas justas e sustentáveis ao longo de todo o processo de produção. Ela também agrega valor ao produto e ajuda a ampliar mercados”, afirmou Joselena.